Cientistas estão declarando guerra contra um vírus causador da leucemia que infectou milhões de pessoas

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A descoberta do primeiro retrovírus humano em 1980 foi uma pequena sensação científica. Os pesquisadores sabiam que os retrovírus – que transcrevem seu genoma de RNA em DNA e o integram ao genoma de uma célula hospedeira – existiam em animais. Mas até que Robert Gallo, então no National Cancer Institute em Bethesda, Maryland, encontrou o vírus da leucemia de células T humanas-1 (HTLV-1), alguns duvidaram que os retrovírus infectassem seres humanos. O HTLV-1 logo foi eclipsado por outro retrovírus que mataria mais de 35 milhões de pessoas e manteria gerações de cientistas ocupados: o HIV. “Se você estivesse trabalhando em retrovírus, você mudaria para o HIV”, diz o epidemiologista Antoine Gessain, do Instituto Pasteur, em Paris.

Mas em uma carta aberta de 10 de maio ao diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, Gallo e outros 59 virologistas, epidemiologistas e defensores dos pacientes pedem um esforço global para erradicar o HTLV-1, que infecta milhões e causa câncer e várias outras doenças. Assim como o HIV, o HTLV-1 se espalha pelo sangue, sêmen e leite materno, e a carta argumenta que as estratégias de teste e prevenção usadas contra o HIV devem ser empregadas para parar o HTLV-1.

O HTLV-1 não consta entre as muitas dezenas de doenças em fichas informativas no site da OMS; ela não é reconhecida como uma doença tropical negligenciada e tampouco consta na lista de doenças sexualmente transmissíveis da OMS. “Eu ainda coço minha cabeça sobre como conseguimos ficar à margem do HIV e da saúde sexual”, diz Graham Taylor, que estuda o HTLV-1 no Imperial College London.

O vírus provavelmente saltou de macacos para humanos em algum lugar da África, dezenas de milhares de anos atrás; o tráfico de escravos ajudou a espalhá-lo pelo mundo. Hoje, os cientistas estimam que 5 a 10 milhões de pessoas estejam infectadas, mas o número real é provavelmente muito maior, diz Taylor. Um ponto quente é o sul do Japão, onde até 6% das mulheres grávidas são portadoras do vírus. Mas os países pobres são os mais afetados, o que explica em parte a negligência, diz Gallo. Na Jamaica e em outras ilhas do Caribe, cerca de 6% de toda a população pode portar o vírus. Partes do Brasil têm altas taxas, milhões estão infectados na África e, em algumas comunidades aborígenes na Austrália, quase metade das pessoas com mais de 50 anos está infectada, segundo um estudo recente. Europa e Estados Unidos não podem ficar tranquilos, Taylor diz: “Se não formos cuidadosos, isso pode se tornar mais prevalente em nossas comunidades sem que tenhamos consciência. Como outras infecções, como o HIV, estão sob controle, o comportamento das pessoas pode mudar .”

A maioria das pessoas infectadas pelo HTLV-1 nunca apresenta sintomas, mas cerca de 3% a 5% desenvolvem leucemia de células T adultas, um câncer que mata pacientes após 8 a 10 meses em média e cujo tratamento não melhorou nos últimos 25 anos. Outros 4% desenvolvem paraparesia espástica tropical, uma doença semelhante à esclerose múltipla. Outras doenças inflamatórias e imunodeficiência também foram relatadas, e um estudo australiano publicado em março mostrou que aqueles infectados pelo HTLV-1 são mais propensos a desenvolver bronquiectasia, uma doença em que partes das vias aéreas estão aumentadas e a morrer.

No entanto, o modesto número de mortos do HTLV-1 e as décadas que muitas vezes passam entre a infecção e a doença, mantiveram-no fora dos holofotes. Em resposta à carta, um porta-voz da OMS apontou que outro vírus, a hepatite B, causa mais de 400.000 cânceres a cada ano em todo o mundo. Em contraste, a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer estima que apenas 3000 diagnósticos anuais de câncer estão diretamente ligados ao HTLV-1. Taylor acha que o número real é maior, mas ele diz: “Eu realmente não acho que isso deve se transformar em uma competição ‘minha doença é mais importante do que a sua doença'”.

Os testes de rotina para HTLV-1 devem estar disponíveis em clínicas de saúde sexual em todos os lugares, escrevem os pesquisadores na carta, e mães em regiões endêmicas devem ser rotineiramente rastreadas para HTLV-1 e aconselhadas a não amamentar se estiverem infectadas. Desde que o teste pré-natal foi introduzido na região de Nagasaki, no Japão, em 1987, a taxa de infecção na população caiu de 7,2% para 1%. A carta também pede testes universais do HTLV-1 para doadores de sangue e órgãos, porque, ainda que raramente, os transplantes transmitem o vírus. “Eu sinceramente acredito que ninguém deveria ter um transplante em que o doador não tenha sido testado para o HTLV-1”, diz Taylor. (Até 2009, os Estados Unidos faziam a triagem de doadores de órgãos, mas a prática foi interrompida porque resultados falso-positivos desqualificavam muitos órgãos saudáveis).

Gallo acredita que uma atenção renovada ao HTLV-1 poderia ter benefícios mais amplos. Ele diz que no início dos anos 80, o vírus acelerou a descoberta do HIV, porque alertou os cientistas para a possibilidade de que um retrovírus poderia estar causando a misteriosa nova síndrome chamada AIDS. Hoje, uma melhor compreensão das poderosas propriedades carcinogênicas do HTLV-1 pode levar os pesquisadores a novos insights sobre o câncer, diz Gallo.