Achado recente abre novas possibilidades para o combate à malária

Coleta do mosquito vetor da malária. Achados demonstraram ser viável bloquear a transmissão da doença “curando” o mosquito – ele não nasce “doente”; como nós, é infectado durante a vida – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

O último relatório global sobre malária produzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o mapa de eliminação da doença está se ampliando nos últimos anos, com mais países caminhando em direção à erradicação de casos autóctones – nosso vizinho Paraguai, por exemplo, foi certificado livre de malária em 2018. No entanto, quando é feito o cálculo do número de casos, a entidade alerta que não houve progresso significativo na redução da doença no período de 2015 e 2017. Para Daniel Bargieri, professor do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, essa estagnação de três anos reforça a necessidade de novas estratégias de controle para a malária.

Bargieri faz essa afirmação em um texto assinado junto com Kim Williamson, da Uniformed Services University of the Health Sciences, nos Estados Unidos. No comentário, publicado na edição da última quarta-feira (8) da revista acadêmica Cell Host & Microbe, os autores dizem que uma descoberta recente feita por um grupo da Universidade Harvard abre possibilidades para desenvolver essas novas estratégias, na medida em que demonstraram ser viável bloquear a transmissão “curando” o mosquito vetor da doença – ele não nasce “doente”; como nós, é infectado durante a vida.

A malária é uma doença infecciosa causada por parasitas do gênero Plasmodium e transmitida por mosquitos Anopheles. Segundo a OMS, em 2017 foram registrados 219 milhões de casos de malária no mundo e 435 mil mortes. Os parasitas mais comuns são o Plasmodium falciparum, principal agente da doença na África, e o Plasmodium vivax, que responde por 74% das ocorrências nas Américas. Esses protozoários unicelulares têm um ciclo de vida bastante complexo, que inclui uma fase de reprodução assexuada nos seres humanos e outra, sexuada, nos mosquitos. Durante essas fases, o parasita muda de forma – e os tratamentos disponíveis contra a malária não são igualmente eficazes em todas elas.

Em um artigo publicado na revista Nature em fevereiro, o grupo de Harvard descreve um experimento no qual uma cobertura de droga antimalárica foi aplicada sobre uma superfície onde os mosquitos pousavam. Após seis minutos ali pousados, os insetos ficaram protegidos contra o Plasmodium. “Seria como se fosse um tratamento profilático do mosquito”, comenta o professor do ICB. Nas áreas endêmicas para malária, seis minutos é o tempo médio que o Anopheles fica sobre telas mosquiteiras tratadas com inseticidas – quando o tempo sobe, é sinal de que o mosquito desenvolveu resistência ao inseticida adotado.

Imagem microscópica dos mosquitos Anopheles – Persian Microbiologist via Wikimedia Commons / CC BY-SA 4.0

Os norte-americanos utilizaram uma droga chamada atovaquona no experimento, mas não sugerem que ela seja adotada para uso em larga escala, já que a substância induz resistência no parasita da malária. Contudo, foi graças às propriedades físico-químicas da atovaquona que os pesquisadores conseguiram o efeito protetivo: é por ter afinidade com gorduras que a droga consegue penetrar no corpo do mosquito.

“Eles descobriram que a atovaquona consegue entrar no mosquito antes dele ser infectado pelo Plasmodium e, estando dentro do mosquito, impede a infecção. Para que isso ocorra, a primeira condição é que a droga seja ativa contra as fases do parasita que estão no mosquito”, conta Bargieri, que se dedica a pesquisar novos modelos para testar a eficácia de drogas contra a malária. Um trabalho recente de seu laboratório descreve um modelo desenvolvido para fazer a triagem de drogas que tenham ação contra os gametas e zigotos do Plasmodium, duas formas do protozoário que infectam os mosquitos.

Ciclo de vida complexo

Quando uma pessoa é picada por um mosquito que carrega o Plasmodium, ela é infectada com uma forma do parasita chamada esporozoíto. O esporozoíto se desloca até o fígado da pessoa e de lá entra na corrente sanguínea na forma de merozoíto. O merozoíto invade as células vermelhas e se multiplica principalmente em novos merozoítos. É nessa etapa que aparecem os sintomas da malária – febre, dor de cabeça, calafrios.

Uma parte menor dos merozoítos vira gametócitos. Essa forma do Plasmodium não causa doença em humanos, mas é a que infecta o mosquito que pica os humanos. Os gametócitos podem ser machos ou fêmeas e, uma vez no organismo do inseto, se transformam em gametas masculinos ou femininos. Os gametas se fecundam e formam um zigoto, que se desenvolve dentro do Anopheles até dar origem a um novo esporozoíto.Os medicamentos atuais atacam sobretudo os merozoítos. Porém, fazem pouco em relação às formas presentes no mosquito vetor. Entre as três principais drogas indicadas para tratar a doença, uma não tem nenhum efeito sobre os gametócitos, outra exigiria doses muito maiores do que as praticadas e a última tem o potencial limitado pela alta toxicidade. O desafio, então, é encontrar um princípio ativo que seja eficaz contra gametócitos e zigotos sem produzir efeitos colaterais graves em humanos e que, além disso, seja viável economicamente.

“Compostos farmacológicos são infinitos, basicamente. Então, ou você tem um educated guess [um chute bem informado, numa tradução livre] muito bom sobre qual coleção de drogas você poderia usar ou, se você quer testar muitas e muitas drogas, você precisa de um modelo que te permita fazer experimentos em larga escala, ver o efeito de muitas drogas ao mesmo tempo. Não dá para testar uma por uma”, afirma Daniel Bargieri.

Coleta de sangue para teste de malária – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

No modelo descrito em artigo publicado na revista Antimicrobial Agents and Chemotherapy, Bargieri e seu grupo utilizaram um Plasmodium transgênico que infecta camundongos para testar simultaneamente a eficácia de diferentes substâncias na inibição ou extermínio de formas do parasita que vivem no mosquito. O protozoário geneticamente modificado carrega um gene que produz uma enzima chamada luciferase, mas a sequência de DNA que controla a atividade do gene só o ativa quando o parasita vira zigoto.

Os cientistas colocaram esse Plasmodium em um meio de cultura que imita as propriedades do intestino do mosquito, junto com um substrato que reage com a luciferase. Depois, acrescentaram a droga que queriam testar e, com um equipamento chamado luminômetro, mediram e emissão de luz produzida pela reação da luciferase. Se se fazia luz, era porque a droga não tinha bloqueado o ciclo de vida do parasita. Mas se não havia emissão de fótons, era porque a droga tinha atividade contra os gametócitos ou o zigoto e, portanto, era eficaz no bloqueio do desenvolvimento do parasita. Hoje, os pesquisadores conseguem testar simultaneamente milhares de drogas ou de concentrações variadas da mesma droga com esse ensaio laboratorial.

“A gente já testou mais de 8 mil drogas com esse modelo e tem a lista das drogas que são ativas contra as formas do parasita dentro do mosquito. Agora, com esse trabalho da Nature em mãos, a gente pode analisar essa lista com outros olhos. Em vez de procurar quais são as drogas mais seguras para uso humano, pode procurar quais são as drogas mais lipofílicas, quais são as mais estáveis (ou) quais são as mais baratas, porque para tratar telas mosquiteiras ou fazer spray em casa precisa ser uma coisa barata”, diz Bargieri.

Saiba mais sobre os pontos fracos do parasita da malária no mosquito vetor neste vídeo:

Fonte:

Jornal USP